Giuliana Viggiano
Os sete moradores da Estação Espacial Internacional (ISS) foram acordados mais cedo no último dia 15 de novembro, quando a Agência Espacial Norte-americana (Nasa) iniciou um protocolo de segurança. O objetivo era mover os astronautas para a nave em que chegaram ao espaço, pois uma nuvem de lixo recém-detectada iria passar perto da Estação, colocando os tripulantes em risco.
Pouco depois, o Pentágono confirmou que os destroços haviam sido gerados por um teste antissatélite conduzido pela Rússia no mesmo dia. Em comunicado, o Departamento de Estado Norte-americano classificou a atitude como “irresponsável” e estimou que até então cerca de 1.500 fragmentos rastreáveis haviam sido encontrados.
Em resposta, o Ministério da Defesa da Rússia negou a possibilidade de colisão entre os destroços do teste e de outros objetos em órbita, inclusive a ISS.
O acontecimento, entretanto, não é um caso isolado — e essa é a principal preocupação dos especialistas.
“Hoje nosso principal problema é que continuamos colocando coisas em órbita e algumas quebram, param de funcionar ou colidem entre si, criando outros fragmentos que então colidem com outros objetos”, explica Alice Gorman, arqueóloga espacial e professora da Universidade Flinders, na Austrália, à CNN.
A armadilha que pode enclausurar a humanidade
No pior dos cenários o número de colisões seria tão grande que levaria à chamada síndrome de Kessler, teorizada em 1978 pelo então cientista da Nasa, Donald J. Kessler.
Nesta hipótese, o lixo espacial presente na órbita terrestre baixa — a até 1.000 quilômetros da superfície do planeta — seria tanto que as colisões entre destroços gerariam um efeito cascata.
Como resultado, camadas inteiras da órbita terrestre baixa se tornariam inutilizáveis, o que é um problema, já que é justamente lá que estão os satélites usados para comunicação, GPS, monitoramento da Terra, entre outras funções.
Segundo Gorman, “construímos a vida contemporânea em torno do acesso às informações dos satélites, e a quantidade de lixo espacial em órbita está colocando isso em risco”.
Também há quem acredite que, se nada for feito para resolver a questão, os humanos se tornarão vítimas da própria armadilha: os detritos ao redor do planeta serão tantos que não será seguro realizar missões espaciais. Ou seja, em sua ânsia por explorar o universo, a humanidade pode se enclausurar na Terra.
As chances de algo do tipo acontecer, no entanto, ainda são remotas. “Quando vemos imagens de simulações que mostram o lixo espacial, parece que o planeta está praticamente cercado de detritos”, comenta Naelton Mendes de Araújo, astrônomo da Fundação Planetário da Cidade do Rio de Janeiro. “Na verdade, a grande maioria daqueles detritos são partes muito pequenas, que estão bem distantes umas das outras.”
O perigo dos fragmentos em alta velocidade
Ainda assim, o especialista ressalta que acidentes são possíveis. Em fevereiro de 2009, por exemplo, o satélite norte-americano Iridium 33 e o russo Kosmos-2251 colidiram à velocidade de 42.120 km/h, o que resultou na destruição de ambos, na criação de ao menos mil fragmentos com mais de dez centímetros e, em 2011, em uma manobra da ISS para evitar colidir com os destroços.
Mas não são esses pedaços maiores que preocupam os cientistas. Os detritos com entre um e dez centímetros de diâmetro são bem mais difíceis de detectar e, portanto, de evitar que colidam com os equipamentos em órbita.
Além disso, até a menor das partículas pode causar um enorme estrago quando está em alta velocidade. “Em média, os detritos de lixo espacial estão viajando a 8 quilômetros por segundo [28 mil km/h]”, observa Araújo.
Em agosto de 2016, por exemplo, um fragmento de lixo espacial de apenas um milímetro atingiu um dos painéis solares do satélite Copernicus Sentinel-1A, da Agência Espacial Europeia (ESA), criando uma cratera de 40 centímetros de diâmetro.
Veja ilustrações e imagens de lixo espacial
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Ilustração mostra lixo espacial ao redor da Terra. Embora baseada em pesquisas, tamanho dos detritos foi exagerado para torná-los visíveis na escala mostrada
Crédito: ESA/Divulgação
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Simulação de janeiro de 2019 mostra a localização de detritos de lixo espacial (pontos brancos) ao redor da Terra
Crédito: Nasa/ODPO/Divulgação
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O satélite Vanguard 1 foi lançado em 1958 pela Nasa e é o objeto que orbita a Terra há mais tempo
Crédito: Nasa/Divulgação
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Um tanque de alumínio do ônibus espacial Columbia foi descoberto em 2011 no Texas (Estados Unidos), quando o nível do lago Nacogdoches baixou em um período de seca. A explosão que provocou a queda do tanque aconteceu em 2003 e também causou a morte dos sete tripulantes
Crédito: Polícia de Nacogdoches/Texas (EUA)
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Um dos painéis solares do satélite Sentinel-1 antes (esquerda) e depois (direita) de ser atingido por uma partícula de lixo espacial. O detrito de menos de 5 milímetros gerou uma cratera de 40 centímetros de diâmetro
Crédito: ESA
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O protótipo da tecnologia desenvolvida pela Astroscale se chama Elsa-d e é composto por dois satélites
Crédito: Astroscale Inc./Divulgação
Hoje, a Nasa estima que existam cerca de 100 milhões de fragmentos de lixo espacial com mais de um milímetro de diâmetro em diferentes alturas da órbita terrestre.
Os astrofísicos temem, contudo, que esse número cresça exponencialmente, tendo em vista os milhares de satélites de empresas privadas que serão lançados nos próximos anos.
Só a Starlink, do sul-africano Elon Musk, já recebeu autorização do governo norte-americano para colocar 42 mil satélites em órbita nos próximos anos, dos quais quase 2 mil já foram lançados.
A empresa afirma que, após parar de funcionar, o equipamento deve levar entre um e cinco anos para se desintegrar na atmosfera terrestre sem maiores complicações e sem causar danos à população.
De fato, a probabilidade de um pedaço de lixo espacial resistir à atmosfera terrestre e causar algum estrago é muito baixa. Segundo a ESA, a chance de uma pessoa ser atingida por um raio é 60 mil vezes maior do que a de ser surpreendida com um fragmento de foguete caindo em sua cabeça.
Apenas um caso do tipo já foi registrado, em 1997, com a norte-americana Lottie Williams, que não sofreu ferimentos.
O que preocupa os especialistas acerca do lançamento de megaconstelações, como a Starlink, na verdade, é a quantidade de lixo espacial em potencial que está sendo lançada para o espaço.
“Satélites param de funcionar por vários motivos e, se não estiverem funcionando e não pudermos controlá-los, eles podem ficar à deriva e colidir com as coisas”, diz Gorman. “Muitos detritos são puxados de volta para a atmosfera, mas isso pode levar semanas, meses e até anos.”
As difíceis soluções para limpar o espaço
Para acelerar esse processo, a empresa japonesa Astroscale Inc. trabalha em diversas espaçonaves comerciais encarregadas de “limpar” o espaço.
O objetivo da tecnologia é capturar satélites extintos em regiões mais altas da órbita terrestre e trazê-los para mais perto da Terra, acelerando o processo de reentrada e desintegração desses objetos na atmosfera.
A empresa planeja colocar a tecnologia em prática em 2024 e, para isso, começou a realizar testes na órbita do planeta em agosto deste ano. O protótipo, batizado de Elsa-d, consiste em dois satélites trabalhando em conjunto e, nessa primeira fase, demonstrou a capacidade de seu sistema magnético de prender e soltar detritos.
Outras soluções para remover detritos espaciais já foram propostas por engenheiros e astrofísicos de diversos países.
Embora as opções variem de foguetes com redes para capturar satélites aposentados a equipamentos com lasers “vaporizadores de lixo”, nenhuma se mostrou viável até agora.
O motivo é que criar tecnologias para condições tão extremas e instáveis quanto as encontradas nos entornos da Terra não é tarefa fácil. Nessas circunstâncias, até algo aparentemente simples, como manter contato ininterrupto com o equipamento em órbita por alguns minutos, pode ser um tanto complexo.
Como explica Alison Howlett, porta-voz da Astroscale, para que o procedimento com o Elsa-d funcione, o sistema de controle na Terra deve permanecer em contato com a espaçonave por 30 minutos, período quatro vezes maior do que geralmente é necessário para realizar procedimentos de rotina em satélites.
“No geral, a missão do Elsa-d é muito complexa”, aponta Howlett. “Mas esperamos que essas demonstrações técnicas mostrem aos clientes comerciais e governamentais que temos os recursos técnicos para fornecer esse serviço.”
No entanto, eliminar o lixo espacial acelerando seu processo de reentrada e desintegração na atmosfera está longe de ser a alternativa ideal.
Os riscos para o meio ambiente da Terra
Um estudo divulgado pela Aerospace Corporation na União Geofísica Norte-americana, em dezembro de 2020, indica haver grandes chances de a combustão dos materiais que compõem satélites e partes de foguetes prejudicar o meio ambiente.
Os autores da pesquisa afirmam que pouco se sabe sobre o fim dos componentes do lixo espacial visto que são queimados na atmosfera terrestre, mas estimam que 60% dos corpos de foguetes e de 60% a 90% da massa dos satélites se desintegrem no processo.
Eles também acreditam que o alumínio seja boa parte do material a entrar em combustão — e é aí que mora o perigo.
Elementos como o alumínio podem interagir com aqueles já presentes na atmosfera da Terra, aquecendo-a e até danificando a camada de ozônio. No entanto, “sem uma modelagem precisa, a extensão exata [desse problema] é desconhecida”, escreveram os cientistas no estudo.
Também conforme o artigo, se todos os satélites previstos forem lançados, entre 800 e 3.200 toneladas de lixo queimarão na atmosfera todos os anos, em comparação com as cem toneladas anuais atualmente.
Espaço sem regras
Outro aspecto que precisa ser levado em consideração é: nem tudo o que está lá em cima e não funciona é lixo. Como observa Alice Gorman, muitos objetos têm valor histórico e cultural.
Um exemplo é o satélite norte-americano Vanguard 1. Lançado em 1958, é o objeto que orbita o planeta há mais tempo. “Tecnicamente, é um pedaço de lixo espacial, mas seu significado cultural reside em estar lá”, diz Gorman.
Segundo o Tratado do Espaço Sideral redigido pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1967, o espaço pertence a todos. Logo, ter uma noção mais abrangente e menos nacionalista das conquistas fora da Terra é crucial para resolver questões como o lixo espacial —, mas nem sempre é isso o que acontece.
Além do Tratado, a única ferramenta que até certo ponto guia as boas práticas fora da Terra é a Convenção sobre Responsabilidade por Danos Causados por Objetos Espaciais de 1972. Contudo, nenhuma delas realmente regula as atividades espaciais, de acordo com a nigeriana Timiebi Aganaba, especialista em governança espacial.
“Essa é a grande questão que temos com o direito internacional, porque não existe uma ‘polícia internacional’; não há autoridade superior ao Estado”, explica a pesquisadora, que também dá aulas na Universidade Estadual do Arizona, nos Estados Unidos. “Dessa forma, os estados optam por estar ou não vinculados [a tratados e acordos] e escolhem se os seguem ou não.”
E não há exatamente uma “punição” para aqueles que não cumprem os acordos.
Além disso, tendo em vista os milhões de fragmentos de lixo espacial em órbita, é difícil apontar culpados por eventuais acidentes. A exceção é quando algo como o teste de antissatélites russo feito em novembro acontece — e, ainda assim, reações mais severas de outros governos podem não ser muito convenientes.
“Todos os países querem manter sua liberdade fora da Terra e não serão os primeiros a condenar exacerbadamente uma ação [como a da Rússia], porque também querem ser capazes de realizá-las”, descreve Aganaba.
Mas como ocupar o universo — por razões políticas ou não — parece ser um grande interesse de diversos países, resolver a questão do lixo espacial também deveria ser.
“Nossa experiência nos mostra que sempre que a atividade humana aumenta muito em determinado ambiente, ele se degrada”, reflete a pesquisadora. “Então, por que não pensar em soluções agora no início, enquanto estamos apenas começando e os riscos de acidentes são baixos?”
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