domingo, 29 de janeiro de 2017
O que aprendi com os ETs
MARCELO GLEISER
RESUMO A partir do acúmulo de indícios de vida extraterrestre, o
físico imagina o que hipotéticos alienígenas ensinariam à espécie humana em
termos de desenvolvimento sustentável, respeito à biodiversidade e combate à
desigualdade. O autor sustenta que esse código conduziria ao advento de uma nova
era moral.
Dilvulgação
Atores vestem roupas de personagens do filme Rogue One: Uma História Star
Wars
A julgar pela quantidade de filmes recentes sobre ETs de todos os tipos –"A
Chegada", "Rogue One: Uma História Star Wars"–, fica óbvio que temos um fascínio
inesgotável por essas criaturas imaginárias.
Seres alienígenas habitam as profundezas do nosso inconsciente coletivo,
espelhos do bem e do mal que somos capazes de fazer. Basta uma breve incursão
pela história do colonialismo, em particular do embate entre europeus e nativos
das Américas, da África e do Pacífico, para entender que, quando duas culturas
colidem, a mais ingênua e desarmada perde feio. De modo bem concreto, somos nós
os alienígenas. A pluralidade de representações ficcionais destes reflete o que
sabemos do mundo, o que sabemos de nós, os nossos medos e expectativas, as
nossas esperanças e desespero.
Existe, porém, algo a mais com os alienígenas, que raramente consideramos em
nossas reflexões. Não me refiro aqui aos tipos ficcionais que vivem nas páginas
de nossos livros ou nas telas de cinema, mas aos que possivelmente existam de
fato, em algum canto da nossa galáxia, ou de uma galáxia bem longe da nossa.
Basta lembrar que a nossa galáxia é uma entre centenas de bilhões espalhadas
pela vastidão do espaço, cada qual contendo entre dezenas de milhões e centenas
de bilhões de estrelas.
Ao considerarmos o que a ciência moderna vem revelando sobre a possibilidade
de vida alienígena, podemos aprender lições essenciais sobre alguns de nossos
dilemas atuais mais desafiadores, incluindo a sobrevivência de nossa própria
espécie. Ou seja, podemos aprender dos ETs lições de sobrevivência planetária, o
que é cada vez mais essencial. Antes, no entanto, devemos rever alguns dados
importantes, de modo a contextualizar nosso argumento.
Como é o nosso caso aqui na Terra, os alienígenas vivem ou se originaram em
algum planeta (ou lua) em órbita em torno de uma estrela. Para simplificar, é
melhor considerarmos apenas ETs com características gerais relativamente
semelhantes às nossas: por exemplo, vida baseada em compostos de carbono e
dependente de água. Eles podem ter evoluído muito além desses vínculos químicos,
sendo mais máquinas do que carbono. De qualquer forma, certamente têm uma origem
bioquímica, mesmo que ela remonte há milhões de anos.
Sua sobrevivência, tal como a nossa, depende da quantidade de energia emitida
pela estrela em forma de radiação e de como essa radiação interage com a
atmosfera do planeta (ou lua) que habitam. No nosso caso, a Terra absorve cerca
de 71% da energia total do Sol que chega aqui; cerca de 23% é absorvida pela
atmosfera por vapor d'água, poeira e ozônio, e cerca de 48% pela superfície. São
aproximadamente 160 watts por metro quadrado no solo. Imagine cobrir a
superfície da Terra com lâmpadas de 160 watts a cada metro quadrado e acendê-las
durante o Natal. Não seria um uso muito inteligente de energia, mas certamente
conformaria um cenário belíssimo se observado de altitudes elevadas.
Para que um planeta possa acolher formas de vida por um tempo relativamente
longo (falamos em milhões de anos), é essencial que ele seja relativamente
estável: sua órbita em torno da estrela não pode ser errática; sua composição
atmosférica não pode mudar radicalmente em períodos geológicos curtos (de
milhões de anos); seu clima deve ser estável, com flutuações de temperatura
dentro de uma faixa metabolicamente viável –ou seja, não muito mais do que cem
graus em torno de zero Celsius (de -50ºC a 50ºC).
Existem exceções, como os seres que vivem perto de ventas vulcânicas
submarinas, onde as temperaturas podem ser mais altas. Mesmo assim, há limites
para que a vida seja possível.
O planeta também precisa receber enormes quantidades de energia,
redistribuindo-a por sua superfície por meio de processos climáticos e
geológicos. Qualquer espécie alienígena que exista na nossa galáxia,
principalmente se for inteligente, que é o que nos interessa aqui, precisará
habitar um mundo que tenha propriedades gerais semelhantes a essas.
tempo Por que as formas de vida inteligente precisam de maior estabilidade?
Porque para que a vida possa evoluir a partir de formas rudimentares (os seres
unicelulares) até seres multicelulares complexos, e desses a seres inteligentes,
são necessários muitos milhões de anos, quando não bilhões. (Aqui na Terra,
foram 3,5 bilhões de anos.)
Da mesma forma que não dá para assistir ao final de uma peça de três horas
num teatro que pega fogo uma hora após o início do espetáculo, o palco da
transformação da química inanimada em vida complexa –o planeta– tem de permitir
que esse drama bioquímico evolua no seu ritmo extremamente lento. E não há a
menor garantia de que haverá um final feliz (se entendermos por felicidade a
emergência de criaturas inteligentes).
Nossa espécie existe há aproximadamente 200 mil anos, um tempo irrelevante
quando comparado aos 4,5 bilhões de anos do nosso planeta. Num contexto cósmico,
onde mesmo milhões de anos são um período efêmero, somos uma espécie ainda bebê,
com muitos desafios a enfrentar, especialmente no que tange à nossa
sobrevivência a longo prazo. É aqui que os ETs podem ser úteis.
A primeira coisa que devemos notar, ao menos a partir de nossa história, é
que duas ou mais espécies inteligentes não podem coexistir num só planeta.
(Atenção: existem vários modos de definir e quantificar inteligência. Estou
interessado aqui em espécies com inteligência criativa capaz de desenvolver
tecnologias avançadas.)
Dada a natureza combativa da vida, centrada, acima de tudo, na sobrevivência,
outra espécie inteligente seria vista como uma ameaça, ao menos no início da
corrida evolucionária. Aqui na Terra, os neandertais, mesmo se não tão
inteligentes quanto os humanos, foram parcialmente assimilados e, na maioria,
aniquilados pelos nossos ancestrais. A coexistência pacífica entre duas espécies
que podem competir em pé de igualdade por recursos necessários para a
sobrevivência é implausível, a menos que tenham atingido um padrão moral muito
elevado.
Quando esse patamar ainda não foi alcançado, ou seja, quando o respeito à
vida acima de tudo é uma norma hipotética, um ideal, o convívio harmônico pode
chegar tarde demais. (Mesmo dentro da mesma espécie, especialmente uma
inteligente, mas com padrão moral inferior, valores culturais distintos e
diferenças étnicas podem levar a conflitos sérios –de racismo a perseguições
ideológicas–, como sabemos. Mas esse é assunto para outro ensaio.)
Para os nossos propósitos, vamos considerar seres alienígenas de uma mesma
espécie que, de alguma forma, encontraram os meios físicos e morais para
sobreviver por milhões de anos. Quais são os seus segredos?
Antes de mais nada, eles entenderam que uma relação predatória com o seu
planeta e com outras formas de vida levaria, mais cedo ou mais tarde, à sua
própria destruição. Entenderam que seu planeta, mesmo que muito grande e fértil,
tem recursos limitados, e que uma exploração irracional dele o transformaria num
deserto. O exemplo doloroso da ilha de Páscoa ilustra o que poderia ocorrer em
escala global com uma espécie que tem uma relação parasítica com a terra da qual
depende.
Os alienígenas teriam aprendido a viver com –e não contra– o seu planeta,
respeitando seus recursos e planejando cuidadosamente como explorá-los de forma
sustentável.
Teriam aprendido a otimizar e maximizar o uso da energia vinda de sua
estrela, como estamos começando a fazer aqui com as energias solar e eólica. Se
a estrela não emitisse energia necessária para suas necessidades, os alienígenas
teriam desenvolvido espelhos e outras tecnologias capazes de focar e aumentar a
quantidade de energia atingindo a superfície do planeta.
Os alienígenas teriam entendido a interconectividade de todas as criaturas
vivas; saberiam que ocupar o topo da cadeia alimentícia significa ter a
responsabilidade de preservar a biosfera, de modo a estender o uso de seus
recursos por períodos ilimitados. Teriam aprendido que, para viver, precisariam
encontrar meios de respeitar a diversidade da vida. Isso só poderia ocorrer se
houvessem redefinido sua relação com outras criaturas vivas.
Tais extraterrestres teriam entendido que, para garantir sua sobrevivência a
longo prazo, precisariam erradicar a desigualdade social; teriam entendido que a
disparidade financeira (se tivessem uma economia) e a exploração cultural levam
à pobreza e à instabilidade social, ambas causas dominantes da predação
planetária.
Para assegurar sua sobrevivência como espécie, teriam criado valores morais
que garantissem a igualdade social, dividindo recursos de forma justa e
equilibrada. Não teriam erradicado a competição, pois saberiam que ela é
essencial para a inovação e a felicidade individual e coletiva, mas teriam
criado mecanismos para assegurar que todos tivessem as mesmas oportunidades de
atingir o sucesso.
Saberiam que uma sociedade justa não precisa, ou deve, ser estéril. Teriam
entendido que essas metas socioeconômicas pedem pelo sacrifício dos que detêm
mais recursos, mas saberiam também que esses sacrifícios seriam temporários,
garantindo a sobrevivência de todos. Teriam criado, a longo prazo, uma sociedade
com um certo nível de disparidade –pois seus intelectuais haviam já entendido
que a igualdade total leva a uma distopia–, mas baseada na dignidade, no
respeito e na confiança.
O resultado desse projeto alienígena em escala global de proteção de recursos
naturais e justiça social seria revolucionário. Podemos chamá-lo de "socialismo
natural". Produziria uma transição nos valores morais da espécie, apagando os
últimos vestígios da brutalidade intrínseca oriunda das disparidades
evolucionárias. Levaria a uma nova era, baseada numa relação moral superior com
o planeta e entre si.
Essa nova era celebraria a diferença individual, ao mesmo tempo em que
identificaria a unidade que conecta os habitantes de uma mesma espécie, todos
dividindo um só planeta e seus recursos naturais. Esses alienígenas teriam
sobrevivido por milhões de anos, criando uma sociedade que mal podemos imaginar.
Temos muito trabalho pela frente.
MARCELO GLEISER, 57, é professor titular de física, astronomia e
filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA. Seu livro mais recente é "A
Simples Beleza do Inesperado" (Record)
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/01/1853547-o-que-aprendi-com-os-ets.shtml
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